Entrevista com o GM Kuljašević; Ding Liren e os segredos do xadrez na China e na Índia !
Por Ricardo Guerra
Davorin Kuljašević é um GM nascido na Croácia. Formado pela Texas Tech University, é um treinador de grande experiência, conhecido por suas astutas observações sobre as tendências atuais do Xadrez mundial.
Kuljašević escreveu vários livros sobre Xadrez, incluindo uma biografia do GM Ding Liren, atual campeão mundial de Xadrez.
Seu best-seller Beyond material: ignore o valor facial de suas peças e descubra a importância do tempo, do espaço e da psicologia no Xadrez, foi finalista do Averbakh-Boleslavsky Award, o prêmio de Melhor Livro da FIDE — Federação Internacional de Xadrez. Atualmente, ele reside em Sofia, na Bulgária.
Na entrevista abaixo, concedida a Ricardo Guerra, Kuljašević faz fascinantes observações sobre o desenvolvimento das escolas chinesa e indiana de Xadrez, os papéis de Magnus Carlsen e Bobby Fischer na História do Xadrez, a importância da Psicologia nos esportes e a influência da Internet e da tecnologia no futuro desse jogo milenar.
RICARDO GUERRA: Você acredita que, nos próximos anos, algum jogador dominará as competições internacionais de Xadrez?
DAVORIN KULJAŠEVIĆ: Ainda não vejo esse jogador. Por enquanto, é o Magnus Carlsen, embora ele esteja mostrando sinais de desaceleração. Há alguns anos, pensei que seria o iraniano-francês Alireza Firouzja, que tem talento para ser um jogador dominante. Atualmente, não tenho mais tanta certeza, porque a dedicação dele ao jogo é tênue. Talvez estejamos entrando em uma era supercompetitiva, em que muitos candidatos lutarão pelo primeiro lugar, mas ninguém dominará por muitos anos.
RG: Podemos afirmar que Magnus Carlsen é o melhor jogador de Xadrez que o Mundo já viu?
DK: Se analisarmos Carlsen de uma perspectiva puramente de jogo — a qualidade de seu jogo — ele é, provavelmente, o melhor jogador de todos os tempos. O GM norte-americano Larry Kaufman publicou uma análise interessante em que compara a precisão dos movimentos dos melhores jogadores do mundo ao longo da história com o mecanismo de Xadrez (https://www.chess.com/article/view/chess-accuracy-ratings-goat), confirmando isso. O estilo de Carlsen é o mais parecido com o de Anatoly Karpov e José Raúl Capablanca, mas ele é superior a eles e à maioria dos outros campeões mundiais, na precisão de seus movimentos e cálculos. Isso é natural, considerando que ele teve o benefício de estudar Xadrez com recursos muito superiores (inclusive trabalhando com Chess Engines) e de jogar regularmente contra outros jogadores que raramente erram (o norte-americano Fabiano Caruana, o russo Ian Nepomniachtchi e o próprio Ding Liren etc.). Essas experiências e seu talento único o ajudaram a elevar seu jogo a um patamar único, que nenhum outro jogador na História conseguiu manter por tanto tempo. Garry Kasparov seria o que conseguiu chegar mais próximo.
Outro ponto importante relacionado a esse debate é a duração do domínio de um jogador dentro do mundo do Xadrez. Carlsen fez isso por mais de 10 anos, na era mais competitiva da história do jogo. Kasparov teve um período de domínio de 20 anos, com uma disputa acirrada contra os russos Anatoly Karpov e Vladimir Kramnik. Mas as décadas de 1980 e 1990 foram relativamente menos intensas, de modo que os períodos de domínio de Carlsen e Kasparov no jogo parecem comparáveis. Na minha opinião, Kasparov está muito próximo de Carlsen, no debate sobre quem é o melhor enxadrista da História. E Bobby Fischer é o terceiro entre eles, principalmente, devido ao seu reinado muito curto e retirada precoce. Os três estão entre os mais brilhantes talentos que o Xadrez já viu e são forças incomparáveis nas suas respectivos fases de destaque.
RG: Você está lançando um novo livro sobre Ding Liren. Em nossa conversa, você mencionou aspectos da personalidade e comportamento psicológico de Liren que achei interessantes. O que você descobriu?
DK: A primeira coisa que se nota em Liren é que ele age de uma forma diferente da maioria dos grandes jogadores de Xadrez. Há quase uma completa ausência de vaidade em seu comportamento. Ele fala com uma humildade incomum para alguém tão bem-sucedido. O checo David Navara talvez seja o único outro jogador de ponta com esse estilo e disposição psicológica. O campeão mundial parece vulnerável e frágil. Mas, paradoxalmente, se torna um lutador intransigente quando joga Xadrez. É como se despertasse uma fera dentro dele.
O exemplo mais famoso foi quando ele recusou uma oferta implícita de empate feita por Nepomniachtchi, no jogo final da partida do Campeonato Mundial de 2023. Em vez de jogar de forma conservadora, Liren optou, com frieza, por uma jogada aparentemente arriscada que fez com que praticamente todos os comentaristas e espectadores da partida quase levantassem de suas cadeiras.
Em entrevistas posteriores, ele afirmou repetidamente que essa jogada não tinha nada de especial e deu a entender que a jogaria em qualquer circunstância. Isso demonstra que ele tem nervos de aço.
Outro aspecto a ser lembrado sobre Ding é que ele vem de uma Cultura sobre a qual a maioria das pessoas no Ocidente ainda não tem grande conhecimento. Portanto, embora grande parte de seu comportamento seja totalmente normal na cultura chinesa, podemos considerar algumas de suas condutas incomuns. Há, naturalmente, uma barreira linguística que, às vezes, pode levar a mal-entendidos entre ele e o público do Xadrez. Mas a minha impressão geral é de que ele tem uma personalidade agradável, e espero ter conseguido transmitir isso em meu livro.
RG: Durante a pesquisa para o seu livro, você descobriu algo interessante na metodologia de treinamento ou sistema de preparação dele?
DK: O funcionamento interno do Xadrez na China é, de certa forma, um mistério. Em geral, eles são muito reservados em relação a seus métodos de treinamento. Qualquer jogador forte lhe dirá que os chineses jogam Xadrez de forma diferente, mas a maioria não consegue entender qual é essa diferença. A melhor descrição que ouvi foi do super guru russo Daniil Dubov, que afirmou que os chineses são ótimos em fazer movimentos menos lógicos ou mais inesperados, mas que ainda assim são muito bons. Como a comunidade chinesa de Xadrez é isolada, eles conseguiram desenvolver um estilo único de jogo.
Certa vez, um chinês me disse que o sistema chinês de Xadrez se baseia, principalmente, em métodos concretos de estudo, como jogo, cálculo e análise. Em contrapartida, o Ocidente há uma ênfase maior em um estudo mais estruturado, por meio de livros, cursos e treinamentos.
É claro que eles estudam também os aspectos teóricos mais fundamentais do jogo. Convidam treinadores e jogadores estrangeiros, principalmente da Rússia, para dar aulas de outros estilos de jogo aos seus melhores jogadores. Eles não se baseiam tanto no conhecimento formal, quanto no conhecimento prático inovador. Estamos começando a perceber uma tendência semelhante na Índia, com ótimos resultados.
Esse aprendizado pode ser comparado com o método baseado na Rede Neural Alpha Zero[1]. Esse programa aprendeu a jogar Xadrez sozinho, baseando-se apenas em um livro de regras e jogando milhões de partidas contra si mesmo.
Em contrapartida, os Chess Engines mais utilizados já vêm com uma importante programação prévia.
RG: Há algum outro elemento específico do sistema chinês de desenvolvimento que devemos mencionar? E quanto ao uso de Chess Engines pelos GMs?
DK: Em suas entrevistas após o Campeonato Mundial, Ding deu a entender que usava métodos de treinamento que não eram familiares à maioria dos outros jogadores de ponta. Em outros casos, ele disse explicitamente que trabalhar com Chess Engines o ajudou a melhorar seu jogo.
Entretanto, jogar determinadas posições contra as Engines, para fins de treinamento, não é uma ideia inovadora. Por exemplo, o búlgaro Veselin Topalov, ex-campeão mundial, teria usado um método semelhante, em sua ascensão de um rating de 2.700 para 2.800. Este é, provavelmente o treinamento mais desgastante que se pode escolher, do ponto de vista psicológico.
Essa opção pode ser comparada a dar socos em uma punching ball [2], da maneira mais poderosa possível, apenas para que ela ricocheteie de volta com uma força ainda maior.
Infelizmente, não temos muitas informações sobre os primeiros anos de Ding, porque o que aconteceu no Xadrez chinês, nos anos 2000, não foi exatamente manchete em comparação com Magnus Carlsen que, aos 13 anos, esmagou a concorrência em Wijk aan Zee (na Holanda) e empatou com Kasparov, em Reykjavik, na Islândia, em 2004.
RG: Algum país dominará o cenário internacional, em um nível muito alto, nos próximos anos? O que explicaria esse domínio?
DK: Há sinais de que jogadores indianos poderão dominar o cenário internacional, em alto nível. Embora haja um expressivo domínio dos indianos muitas posições abaixo de 2.600 (Top 150-200), a concorrência será para eles muito mais forte e em um rating mais alto. Os 20 maiores do mundo formam um círculo fechado e não será fácil a eles se tornaram grandes jogadores e receberem convites para torneios de maior prestígio.
No entanto, os melhores jogadores indianos estão recebendo o apoio logístico adequado para enfrentar os mais fortes jogadores do Mundo. Eles são muito bem treinados e recebem sólido apoio financeiro, porque o Xadrez é muito respeitado na Índia. Já treinei vários jovens jogadores indianos, alguns dos quais se tornaram GMs, e percebi que a paixão e a ética de trabalho são incomparáveis. O futuro do Xadrez deverá pertencer à Índia, embora seja difícil prever se, nos próximos anos ou mesmo décadas, eles produzirão outro jogador brilhante, como Vishy Anand.
RG: Um jogador pode chegar a GM usando apenas métodos de treinamento vinculados à Internet ou alta tecnologia? É possível atingir esse nível sem seguir a rota tradicional, concentrada em livros, jogos e análises no tabuleiro?
DK: Há alguns anos, minha resposta seria: “Definitivamente, não”. Não tenho mais tanta certeza disso. Por conta da pandemia da Covid, as tendências e métodos de aprendizado mudaram muito.
Algumas iniciativas foram implantadas na década de 2010, quando os mecanismos e tecnologias se tornaram cada vez mais acessíveis, eficientes e sofisticadas.
Trabalhei com crianças que nunca leram, nem pretendem ler, um livro sobre Xadrez e obtiveram resultados muito melhores do que adultos que leram dezenas de livros.
Muitos jovens GMs conquistaram títulos confiando principalmente, em tecnologias baseadas em computadores, ao invés da abordagem tradicional. O GM Simen Agdestein, da Noruega, afirmou, recentemente, que um de seus jovens alunos se tornou GM sem ter lido um único livro sequer.
Alguns dos maiores prodígios indianos (Arjun Erigaisi, de apenas 20 anos) afirmam que leram poucos livros de Xadrez. Um desses poderá se tornar, em breve, campeão mundial.
O atual nº 1, Magnus Carlsen, é muito culto e conhecido por sua fenomenal memória sobre importantes jogos do passado. Ao contrário da nova geração de jogadores que está despontando, poderíamos afirmar que Carlsen é um viciado em livros de Xadrez.
Os métodos de aprendizado on-line serão essenciais no futuro e se aprenderá mais rápido. Para a geração mais antiga, incluindo a minha, aprender principalmente por meio de um computador pode parecer difícil. Ainda assim, para um jovem enxadrista, que é uma página em branco, esses métodos, provavelmente, serão naturais.
O melhor exemplo disso é o argentino Faustino Oro, de apenas 10 anos de idade, que está a caminho de se tornar o mais jovem Mestre Internacional da História, caso supere o recorde do indiano Rameshbabu Praggnanandhaa. Vale mencionar que Faustino Oro começou a jogar há apenas três anos. A única maneira de ele ter progredido tão rapidamente terá sido usando os mais inovadores métodos de estudo.
RG: Qual seria a principal explicação para a ascensão de tantos jogadores de alto nível na China e na Índia?
DK: São duas histórias diferentes. Na China, o Sistema produz jogadores de alto nível; na Índia, os jogadores de alto nível criam o Sistema.
Desde o final da década de 1980, os chineses estabeleceram uma rígida hierarquia, muito semelhante à utilizada na extinta União Soviética. A seleção começa com uma grande quantidade de jogadores escolares em competições infantis. Daí, escolhem-se os maiores talentos, que são treinados por técnicos regionais. Os mais destacados são treinados pelos melhores técnicos do País, para disputar competições internacionais.
Foi assim que a China executou seu plano estratégico de quatro etapas para vencer o Mundial Individual e as Olimpíadas de Xadrez, a principal competição por equipes, nas categorias masculina e feminina, em 35 anos. Não é de surpreender que a Rússia e a Ucrânia sejam os dois outros únicos países que conseguiram essa rara façanha. Eles também usaram esse sistema rígido, mas eficaz. Os chineses demonstraram sucesso semelhante, com essa estratégia, em outros esportes.
A Índia é outro exemplo de como o entusiasmo da nação por um determinado esporte pode produzir jogadores de alto nível. Assim como os chineses, eles têm uma vantagem significativa sobre a maior parte do Mundo: têm mais de um bilhão de habitantes. Não há um sistema de seleção dos melhores talentos na Índia, como vemos na China. É a sobrevivência do mais apto, baseado em competição na qual só os melhores encontram o seu caminho. Isso os torna, desde muito cedo, resistentes e testados na competição.
Treinei jovens jogadores indianos e posso atestar sua paixão e capacidade intuitiva de realizar os cálculos complexos necessários para se tornarem fortes enxadristas.
RG: Sobre a influência da tecnologia e da Internet, quais aspectos podem ser ressaltados como de maior relevância no crescimento do nível do jogo?
DK: A tecnologia e a Internet podem ajudar, de muitas maneiras, uma pessoa a estudar e jogar Xadrez, cada vez melhor.
As principais são:
Jogar on-line — as plataformas oferecem oportunidades ilimitadas para que, qualquer pessoa com acesso à Internet, pratique suas habilidades. Permitem que qualquer um jogue mais partidas, em poucos anos, do que, por exemplo, o russo Mikhail Botvinnik (tricampeão mundial em meados do Século XX) e Hikaru Nakamura (de apenas 36 anos, norte-americano nascido no Japão, um dos melhores do mundo, que já jogou mais de um milhão de partidas on-line).
Outro aspecto importante é que você pode encontrar bons adversários, a qualquer hora do dia ou da noite, em qualquer lugar do Mundo. Há cerca de 30 ou 40 anos, você só podia jogar partidas contra pessoas da sua cidade ou do seu clube.
Chess Engines — trabalhar com engines, transformou os jogadores modernos e o próprio jogo. A precisão na abertura do jogos disparou nas últimas décadas. Um amador que estude aberturas no site Chessable — a plataforma mais popular — venceria um jogador do nível dele, da década de 1950, logo na abertura, provavelmente oito em cada 10 vezes.
As Engines nos ensinaram a apreciar a solidez do jogo e certos movimentos, que podem até parecer errados ou violar princípios posicionais, mas que são opções viáveis.
Gerações de jogadores que trabalham intensamente com Engines, desenvolveram uma abordagem não ortodoxa. Essa mudança é positiva, pois permitiu a expansão da nossa compreensão sobre todas as complexidades inerentes ao Xadrez.
- Treinamento on-line — antes, o acesso às aulas, ao treinamento ou jogar on-line contra um adversário, dependia de sua localidade. Com sorte, haveria em sua cidade um bom treinador ou um forte jogador; se não, era melhor escolher outro esporte…
A Internet permite que nos conectemos remotamente com treinadores e parceiros para colaboração mútua. Isso nos levou a um boom do Xadrez, mundialmente, no Século XXI, em vez de apenas nos tradicionais centros de poder — como Rússia, Hungria ou a ex-Iugoslávia.
Bancos de dados — as gerações mais antigas escreviam à mão as suas análises das aberturas e das principais posições do meio e final do jogo. Do ponto de vista atual, parece que eles estavam na Idade da Pedra.
Hoje, os bancos de dados permitem armazenar, atualizar e recuperar informações vitais, rapidamente. Eles contêm o registro de milhões de jogos, permitindo que qualquer pessoa estude e se prepare para enfrentar seus adversários.
Novas tecnologias de aprendizagem — os avanços tecnológicos permitiram que se desenvolvessem softwares que facilitaram o aprendizado. O mais famoso deles é o site chessable, que se baseia na Técnica de Aprendizagem por Repetição Espaçada que permite às pessoas memorizarem informações, tais como variações de abertura ou finais teóricos.
RG: A Literatura sobre Xadrez é profunda, dissecando estratégias, elementos táticos, aberturas, meios de jogo, finais de jogo e História. Os textos são tão abrangentes e detalhados, que o Xadrez pode até servir de modelo para treinadores de outros esportes. Em seu fascinante livro How to study Chess on your own: creating a plan that works… and sticking to it! (New in Chess, 2021), você analisa detalhes significativos sobre a ênfase a determinados aspectos do jogo, como otimizar o tempo de estudo e evitar metodologias ineficientes. Então, o que um jogador deve fazer para alcançar um ELO de 1.500, 2.000, nível de Mestre ou GM? Em que ele deve se concentrar?
DK: Deve se concentrar, principalmente, em aprimorar as suas habilidades táticas para atingir um ELO de 1.500. Deve também aprimorar a capacidade de explorar qualquer vantagem temporária que surja. Porque até mesmo a melhor estratégia pode desmoronar, se perdermos para a tática do adversário. As habilidades fundamentais incluem uma visualização adequada do tabuleiro, o reconhecimento de padrões táticos e xeque-mate típicos, a exploração da vulnerabilidade do Rei do adversário, o conhecimento das escolhas do oponente etc.
Para alcançar um ELO 2.000, um nível avançado, o jogador deve aprimorar seus conhecimentos táticos e outras habilidades do jogo, tais como solidificar seu repertório de aberturas e ganhar experiência em torneios. O jogador que atingiu um ELO de 2.000, terá um jogo posicional melhor, juntamente com um conhecimento superior das aberturas e finais de jogo. A principal diferença entre um jogador de nível 1.700 e um do nível 2.000 é um maior conhecimento das habilidades táticas. Os jogadores na faixa de 2.000 erram muito menos.
Para atingir o nível de Mestre, é preciso desenvolver bons conhecimentos posicionais e estratégicos, e ser capaz de calcular vários movimentos com precisão. Precisa também ser capaz de explorar, metodicamente, pequenas debilidades do oponente e transformá-las em vantagem.
A maioria das partidas entre jogadores de nível 2.000 é decidida no final. Um jogador com título de Mestre deve ter profundo conhecimento teórico e compreensão das técnicas de finais.
Chegar ao nível de GM exige muito trabalho e conhecimento. É um título altamente cobiçado, que exige significativos treinamento e dedicação. O título de GM é quase inatingível pela maioria. Um jogador de nível 2.400 domina todas as áreas fundamentais do jogo. Para chegar ao nível de GM, um jogador precisa se concentrar nos pontos fracos que impeçam o seu progresso. Isso pode ser decorrente da má administração do relógio, preparação inadequada das aberturas, falta de um jogo dinâmico, medo de assumir riscos, conhecimento insuficiente para finais de jogo, temor de jogar contra adversários de nível mais alto, habilidades defensivas deficientes, estilo de vida não profissional etc.
Para mim, o nível de GM é caracterizado pela capacidade de, em qualquer fase do jogo, sempre encontrar a melhor jogada.
RG: Quais jogadores tiveram maior influência no seu desenvolvimento como enxadrista?
DK: O primeiro jogador que estudei foi o franco–russo Alexander Alekhine; o outro foi Garry Kasparov, um fantástico exemplo com quem aprendi a importância de uma sólida preparação de aberturas, iniciativas e precisão de cálculo. Também espelhei meu repertório de abertura com as brancas, a partir dos jogos do Karpov. Estudar os seus jogos melhorou a minha intuição posicional e técnica de final de jogo.
Finalmente, o quarto jogador que teve um impacto profundo no meu desenvolvimento foi o russo Rashid Nezhmetdinov. Ele não é uma figura conhecida, mas basta saber que o grande gênio do jogo ofensivo, Mikhail Tal, declarou, certa vez, que o dia mais feliz de sua vida foi quando perdeu para Nezhmetdinov.
Nezhmetdinov foi maior do que o próprio Tal, dominando os ataques com sacrifício que levam ao xeque-mate. Sua partida contra o bielo-russo Lev Polugaevsky é uma das obras-primas da história do Xadrez.
RG: Depois que atingiu o nível de Mestre, quais livros tiveram em você impacto mais significativo? Algum deles lhe deu aquele empurrão final para levá-lo ao nível de GM?
DK: Em minha trajetória de MI a GM, quase não li livros. A não ser alguns de Mark Dvoretsky. Estudei, principalmente, jogos de GMs para entender como o Xadrez é jogado na elite. Mas o livro Positional decision making in Chess (Quality Chess, 2007), de Boris Gelfand e Jacob Aagaard, foi o que mais profundamente me influenciou — e eu já era GM. Esse livro vale ouro puro!
RG: O desempenho de Bobby Fischer em 1971, durante os Candidates Matches, quando ele arrasou o russo Mark Taimanov, por 6 a 0, nas quartas de final; e Bent Larsen, pelo mesmo placar, nas semifinais, foi impressionante. A diferença que se viu entre ele e seus concorrentes foi um divisor de águas no Xadrez. Mesmo que sua ascensão meteórica tenha durado pouco, já que ele entrou em um hiato indefinido das competições internacionais, após a final contra o russo-francês Boris Spassky, sua façanha jamais foi repetida. Aquela enorme diferença no placar final, na quarta de final e na semifinal, nunca mais aconteceu. Seria um desafio para um historiador encontrar um placar tão desfavorável em uma quarta de final e uma semifinal consecutivas, em qualquer esporte. Como você analisa o histórico feito de Bobby Fischer?
DK: Suas vitórias consecutivas contra Taimanov e Larsen, em 1971, são algumas das melhores performances, não apenas no Xadrez, mas na história dos Esportes em geral. Apenas o ítalo-americano Fabiano Caruana chegou perto desse feito, ao vencer sete partidas na Sinquefield Cup de 2014, com a participação de Carlsen e de todos os melhores do mundo. Depois daquelas duas vitorias por 6 a 0, Fischer ainda chegou a uma façanha ainda mais assombrosa: 20 vitórias consecutivas no Torneio Interzonal e na Final de Candidatos, contra o armênio Tigran Petrosian — outro feito extraordinário. Na História do Xadrez, nenhum resultado chega perto disso, porque Fischer estava no seu auge. No final da década de 1960, ele já era um jogador dominante, apesar de Petrosian e Spassky terem conquistado, nesse período, títulos do Campeonato Mundial.
Em 1971, Fischer estava com 28 anos de idade, atingindo a maturidade completa na vida pessoal e no Xadrez, que jogou em alto nível, por mais de uma década. Ele sempre foi obcecado em ser o melhor do Mundo, e tinha talento e habilidades para isso.
Seus oponentes, embora excepcionalmente fortes, não estavam à sua altura. Fischer tinha uma missão pessoal, da qual não abria mão: ganhar o título mundial a qualquer custo. E Fischer jogou de forma brilhante.
* * *
O pior sentimento de um jogador de Xadrez é saber que não pode cometer erros, além de ter que suportar as pressões psicológicas do confronto presencial, cara a cara. Os computadores não precisam lidar com isso. Taimanov e Larsen acharam que estavam enfrentando uma máquina e tremeram. Eles não puderam lidar com as forças de Fischer.
RG: Da mesma maneira, no Torneio Mundial de Blitz, de 1970, em Herceg Novi, Fischer derrotou o letão Mikhail Tal, o armênio Tigran Petrosian e o russo Vasily Smyslov. E não gastou mais do que dois minutos e meio de seu tempo em partida alguma! Venceu o evento e terminou cinco pontos à frente do segundo colocado. Esse resultado também nunca mais foi repetido nesse nível no Torneio de Blitz.
DK: Todos os aspectos da supremacia de Bobby Fischer se alinharam nesse período. Nenhum outro jogador conseguiu chegar perto — e ele sabia disso, o que lhe deu enorme confiança. E foi por isso que ele jogou tão rápido. Ele era muito superior a todos, um enxadrista à frente de seu tempo.
Fischer teria todas as habilidades para fazer frente a Carlsen, pelo título mundial, mesmo com o norueguês no auge da sua carreira (se pudéssemos “teletransportá-los” de 1971-72 para 2014 ou 2019).
A carreira de Fischer, infelizmente, terminou prematuramente. Se tivesse continuado seu domínio, como na década de 1970, teria provavelmente se consagrado como o maior de todos os tempos.
Algumas pessoas, especialmente nos Estados Unidos, ainda acham que Fischer é o maior. Mas, para mim, não há evidências claras sobre isso, porque ele atuou em altíssimo nível apenas por alguns anos.
Em meados da década de 1970, o jovem Anatoly Karpov já estava se tornando uma força, e ninguém pode adivinhar como os matches entre eles teriam terminado.
Kasparov e Carlsen dominaram, por períodos muito mais longos. E é apenas por isso que lhes dou ligeira vantagem sobre Fischer.
RG: Ding afirmou que é, ao mesmo tempo, emocional e racional. E que precisa aprender a controlar esse lado efusivo da sua personalidade quando está jogando. Isso é algo muito importante que os jogadores de alto rendimento precisam controlar. Os mais bem-sucedidos parecem ter a capacidade de ativar e desativar suas emoções, quando necessário. O lendário Michael Jordan parecia indiferente quando ia bater um lance-livre, mas também demonstrava níveis surpreendentes de felicidade. Comparativamente, o futebolista argentino Lionel Messi mantém a serenidade quando está prestes a bater um pênalti, mas sempre demonstra muita alegria ao levantar um troféu.
A capacidade de conter as emoções mais extremas, em situações críticas, é de grande importância em qualquer esporte. Em alguns, pode ser ainda mais crítico. Como isso se aplica ao Xadrez?
DK: Controlar as emoções durante um momento de alta pressão é uma das habilidades que separa os homens dos meninos. Ding é um excelente exemplo de jogador muito calmo e controlado. Entre os ex-jogadores de ponta, o ucraniano Vassily Ivanchuk poderia ter tido uma carreira melhor, se controlasse os nervos.
O Xadrez é um diferente dos outros esportes. A pressão interna se acumula ao longo pelas três, quatro ou mais horas de jogo. Já notei que jovens enxadristas tendem a lidar melhor com as pressões competitivas e a fadiga emocional, do que os veteranos. Esta seria outra razão pela qual o Xadrez vem se tornando um jogo mais para jovens.
RG: O jornal espanhol AS Sport destacou a paixão do atacante Mohamed Salah, do Liverpool, pelo Xadrez. O egípcio declarou que joga com frequência. Acredito que o Xadrez pode ser terapêutico e ajudar jogadores profissionais a se livrarem de situações estressantes, porque exige, incondicionalmente, concentração total. Isso leva a um estado, descrito pelo psicólogo húngaro-americano Mihaly Csikszentmihalyi como flow, “uma condição de total entrega à tarefa que está à sua frente”. A única coisa que importa, naquele momento, é a atividade na qual se está imerso.
A paixão por um hobby ou outra atividade pode ser uma arma muito poderosa, contra as distrações superficiais e os desafios mentais do mundo hipermoderno. Em momentos de adversidade, a paixão por uma atividade ou hobby ajuda as pessoas a lidarem com essas situações?
DK: O Xadrez é um dos melhores hobbies que se pode ter, principalmente porque envolve muitas funções cognitivas. Além de controlar a impaciência, aprimorar a concentração e aliviar o estresse diário, aprimora o pensamento abstrato, o planejamento de longo prazo e a antecipação das jogadas do adversário.
Essas habilidades estratégicas são preciosas para qualquer pessoa, desde um jogador de ponta até um CEO. Jogadores de futebol, como Kevin de Bruyne e Luka Modrić, ou de basquete, como Nikola Jokić e Luka Dončić, conseguem ver duas ou três jogadas à frente, antes que a maioria perceba o que está acontecendo.
Conhecer os padrões de seu jogo ou negócio, e pensar estrategicamente para executar a próxima jogada ou ação é algo em que o Xadrez ajuda muito. Ele também equilibra o bem-estar mental, pois permite deixar de lado, por um tempo, os problemas do mundo real.
Foi interessante a sua observação sobre as distrações superficiais e os desafios mentais no Mundo de hoje. Por envolver a mente de forma completa, jogar Xadrez é, sem dúvida, um passatempo melhor do que navegar nas redes sociais ou jogar videogame.
Sabemos que esportistas profissionais têm muito tempo livre entre treinos e jogos. Jogar Xadrez é uma das melhores coisas que eles poderiam fazer, pois seus benefícios ajudam a aumentar a concentração e outras habilidades cognitivas.
Pela mesma razão, jogadores profissionais de Xadrez são aconselhados a praticar um esporte físico, como hobby. E, na verdade, muitos o fazem. Carlsen é o melhor exemplo disso, pois está, há muitos anos, em excelente forma física. De fato. isso lhe dá uma grande vantagem competitiva sobre os adversários, pois ele pode derrotá-los na quinta ou sexta hora de um jogo indefinido. Enquanto os adversários perdem a concentração, ele permanece totalmente focado.
RG: O GM russo Vladimir Kramnik destacou um conceito muito interessante, que me fez lembrar de um goleiro com quem trabalhei no Olympique de Marseille. O russo disse que não é muito competitivo por natureza e que não tem medo de perder. Por isso, tende a se concentrar no processo para se tornar melhor. O goleiro francês Yohann Pelé foi o jogador com maior autocontrole com quem tive contato. Era um atleta de alto nível, com a serenidade necessária para bem desempenhar o seu trabalho, nas situações mais críticas. Perguntei a ele sobre isso e ele respondeu que encarava o futebol naturalmente, um trabalho como outro qualquer. Quem pensa assim, elimina muita pressão desnecessária e melhora o desempenho. Qual a sua opinião?
DK: Kramnik e Pelé mencionam uma abordagem quase ideal para um profissional do esporte. Também li que Toni Kroos, o meio-campista do Real Madrid, tem atitude semelhante.
Para ter o melhor desempenho possível, é fundamental encontrar o equilíbrio entre a calma e a competitividade. O excesso de um ou de outro pode levar a situações de falta de controle. Algumas pessoas são naturalmente calmas e concentradas em seu trabalho como desportista; outras, mais suscetíveis a distrações e pressões externas. Nesse ponto, os psicólogos esportivos podem ajudar muito.
Gostaria de me identificar com a abordagem de Kramnik, porque ela geralmente traz mais sucesso a longo prazo e é também mais saudável. Quando criança, depois adolescente, o Xadrez era, para mim, um jogo divertido. E eu tinha uma abordagem semelhante. Mas quanto mais a idade passava, mais pressão eu sentia para ter um bom desempenho, ao invés de aproveitar o processo.
Muitos profissionais de Xadrez enfrentam pressões semelhantes. Grande parte vêm da necessidade de ter que ganhar a vida, porque os prêmios em dinheiro não são grandes. Às vezes, jogadores profissionais demonstram falta de autocontrole nas horas decisivas, problema que também atinge amadores.
O Xadrez, em si, já é bastante estressante. Porque você pode perder por um descuido, tudo o que construiu durante horas. Jogadores super calmos, como Kramnik, são poucos e raros.
Sobre o autor
Ricardo Guerra é Fisiologista do Exercício e tem Mestrado em Fisiologia Esportiva, pela Liverpool John Moores University. Trabalhou com vários clubes de futebol no Oriente Médio e Europa, incluindo as seleções do Egito e do Catar. Em 2015, foi Fisiologista do Exercício do Olympique de Marseille, época em que o time chegou à final da Copa da França contra o PSG.
Ricardo detém a mais importante licença de treinador da FA — Associação de Futebol da Inglaterra e também da UEFA — União das Associações Europeias de Futebol.
Viajou pelo Mundo, coletando dados e quantificando a capacidade fisiológica de jogadores de vários países. Seus artigos foram publicados em mais de cinco idiomas em várias organizações de notícias.
Atualmente, Ricardo está radicado nos Estados Unidos, é candidato a PhD em Fisiologia do Exercício, está escrevendo um livro sobre o futebol brasileiro e pode ser contactado pelo e-mail rvcgf@hushmail.com
[1] AlphaZero é a mais recente versão da Inteligência Artificial do Google DeepMind, um dos sistemas especialistas mais avançados que se conhece, por se calcar em heurística — e não apenas lógica — para a resolução de problemas. Sua capacidade de analisar situações e tomar decisões que pareçam ruins, num primeiro momento, mas que oferecem resultados satisfatórios jogadas à frente (um processo que, por décadas, foi considerado exclusivamente humano) levou o software, nos seus primeiros passos a derrotar os maiores jogadores de Go do mundo. O Go é um jogo abstrato de estratégia, para dois jogadores, cujo objetivo é cercar mais territórios do que o oponente. O jogo foi inventado na China há mais de 2.500 anos e acredita-se que seja o mais antigo jogo de tabuleiro dos tempos modernos.
[2] Equipamento utilizado em esportes de luta, como boxe e muay thai, para desenvolver reflexos, agilidade e coordenação motora. O objetivo é acertar a bola com precisão e rapidez, simulando a movimentação do adversário, em um combate real.
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